Estou em
desespero. Não tenho a quem pedir socorro. Também não confio em ninguém. Melhor
dizendo, não tenho ninguém. A verdade curta e grossa é que estou amarrado na
velhice, e não entendo nada. Ando na rua e disfarço. Pareço invisível. Ninguém
me vê. Ninguém olha minha jaqueta de couro militar, o boné da Esquadrilha da
Fumaça, a blusa verde de lã legítima.
Ninguém se importa. Se eu cair
duro, sem cerimônia, vão me varrer para o necrotério. Só de pensar, me arrepia a
espinha. Hoje, estou desesperado. É como no juízo final. Quero aproveitar os
últimos momentos, mas é igual a estar nos instantes derradeiros e não ver mais nada.
Estou no fim do laço e tenho
tempo sobrando, engraçado. O dia do juízo final pode ser hoje, agora, a
qualquer momento. Mais ainda, quando minha cabeça ferve. O tempo livre apenas
serve para eu pensar no quanto tudo se esgota entre as rugas do meu desespero.
Não há como aproveitar mais nada.
Agora, você vai se surpreender.
Na verdade, isso é uma mentira, não sou velho. É um engano, um castigo, um
absurdo! Continuo com dúvidas, até piores do que antes. Tenho dores no
corpo, mas não entendo nada desse negócio, nunca entendi. O mais complicado são
as lembranças, que cálice amargo! Quando elas surgem, minha consciência é
assaltada por mágoas difíceis de acreditar. Enrolo tudo num mesmo bolo e me
perco com a quantidade de dores.
Eu me pergunto por que ninguém vê
uma pessoa com um mínimo de misericórdia. Por que ninguém ajuda ninguém, e todo
mundo fica no seu casulo, sozinho? Pensam que isso vai ajudar? Digo de cadeira
que não. Daqui a pouco você, ou o amigo, ou o parente, estará morto, e aí, vai
ficar todo mundo pasmo, com a sabedoria do fim. Justamente com esse fim que
cala toda ignorância.
Claro que se eu fosse jovem,
também, não daria a mínima. Fico até aliviado por não ser sou só eu. Tem muita
gente nessa situação. Você pode até dizer que é jovem, mas se não morrer antes,
sua hora vai chegar, talvez até bem pior que a minha. Vai saber. Filhos? Eles
não têm tempo. Dois não valem por um. Sou um peso para eles. Já viu velho caber
na vida de jovem?
Raramente durmo. Internet é aspirina
de uso contínuo. Quanto mais desesperado, mais uso. Papai seria um usuário
habitué, pelo destempero que lhe era peculiar. Papai era engraçado, tão duro e
ríspido. Não sei porque ele era assim difícil. Puxei mamãe, que sempre
acalentava tudo com um florzinha de esperança. Não fosse isso, acho que nem estava
aqui para falar.
Mas estou cansado de mim, cansado
de não descansar um segundo, de não ter uma gota de sono. Vejo a noite se
esvair e não durmo. As horas escorrem ligeiras, e eu deitado, sou testemunha da
minha difícil respiração. Quando eu era jovem, como dormia, como a engrenagem
funcionava. Vivia sem saber que vivi.
E agora? Agora, a noite é a hora
da verdade. Posso ter um dia bom, mas quando chega a noite, sou tomado pelo pânico. Não é à toa que existem filmes de terror. Noite é desespero. Basta
apagar a luz para eu ser tomado pelo pavor. Entro num calabouço inacreditável,
é o inferno.
A noite é o teste que a gente passa, uma hora você vai passar também, vai chegar a sua hora, pode crer. De
dia, tudo pode estar encaixado nos devidos lugares, mas é de noite a maior
prova, a verdadeira prova, aliás. Bem na hora de deitar, quando eu adoraria
fechar os olhos em paz, sou tomado por mim mesmo, pela sombra, por pavores.
Lembranças são gigantes assustadores.
Junta tudo, as coisas se enlaçam e entro no túnel subterrâneo. Tenho
taquicardia, ao invés de descanso. Levanto, olho pela janela, o mundo dorme o
sono dos justos. E eu, protagonizo o inferno. Todo mundo está vivendo, só eu
estou morrendo.
Nos finais de semana, é tudo
pior. A angústia carrega nas tintas, e aí, me torno um elemento perigoso. Viro
um monstro que anuncia a falência deste País. Engraçado, mas não sei bem por
quê, Deus não me quer com Alzheimer. Estou com a cabeça boa, até demais. As
lembranças inclusive é que me torturam.
Sim, já falei, mas não lhe disse
que sou um refém das lembranças, que gostaria de fazer tudo diferente. De
acertar com as pessoas que errei, de não magoar quem machuquei. Queria pedir
perdão a algumas pessoas, queria que elas me amassem, mas isso é impossível.
Minha mente se multiplica por mil
e meu rosto é tomado por olhos de fogo, que não seriam meus, caso eu tivesse
alguém para abraçar. Alguém que dissesse que vou ficar bem, caso eu tivesse uma
mão para segurar. Mas o que acontece é o lança-chamas se jogar nas redes
sociais. Destilo ódio sem limites, transbordo ira, convoco a revolução. A cada
cinco minutos, coloco linhas de ódio, como se isso resolvesse alguma coisa no
meu caos de vida.
Ficar em casa é uma tortura. Aí,
se apossa de mim uma vontade de não fazer nada, de não ser nada. É a hora
mágica do palco sem plateia, apenas eu e as cicatrizes entre as frestas
incontroláveis. Sabe o que é desespero?
É uma prestação de contas, um conta-gotas maldito, que cobra juros altos, a
cada pedaço de meu dia, pior ainda quando estou em casa.
Caso é que sou aposentado. E geralmente, como não tenho o que fazer, eu me puno. Fico dentro daquilo, me judiando, me
fazendo mal. Olho e me vejo numa posição fetal, uma criança densa dentro de um
corpo de velho, e aí, não tem ninguém para chamar. É bem essa a hora do pânico,
do desespero.
Eu lhe digo uma coisa. É a alma
que tem pressão alta. É a alma que faz o coração ter um ataque súbito, é o
abandono que maneja toda essa desgraça. A alma quer viver e não quer morrer. A
alma quer só um afago que podia fazer toda a diferença do mundo. Sabia que eu
era um rapaz disputado pelas garotas? Sabia que eu ficava no colo no meu avô
como o predileto? Estudei nas melhores escolas, fui um grande engenheiro,
realizei obras! Mas nem assim você quer saber de mim, quem se importa?
Mas no fundo, estou mal, preciso
de ajuda, preciso voltar a me sentir vivo, preciso ser amado. Logo eu, falando
em ser amado, imagina se alguém vai querer amar um trapo velho como eu. Mas tão
bom poder falar um pouco, estava precisando desse desabafo. Engraçado, até
parece que me sinto melhor?
Vou lhe dizer, preciso ficar
firme. Por mais que a minha vida seja um inferno. Mesmo que atravessar os dias
seja um martírio, preciso ficar firme. Porque se fraquejar, eles vêm, me põe
num asilo para vender esse apartamento. Aliás, meu orgulho nunca permitiria
pedir algo nesse sentido, mas me ocorreu que eu posso tentar, então vou
arriscar em lhe perguntar: você pode me ajudar?