quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Inveja

    Tem gente que precisa ser invejada para se sentir feliz. Há uma relação entre o que o outro pensa de você e o que você pensa de você. Ser apreciado pelo outro gera, agrega valor. É uma forma de enganar o cérebro. O outro te invejando, já é meio caminho andado de que você está tendo sucesso nesse emaranhado incompreensível que costuma levar o nome de vida. 

A inveja é de que você é feliz, já que, muitas vezes, você tem dificuldade em saber que é feliz. Nesse caleidoscópio, a pessoa se vê no que enxerga do outro. É um espelho com duas faces. Atrair a inveja é uma das melhores questões da humanidade, e talvez, o mais sincero dos sentimentos. Inveja é um sentimento. Trabalho duro é espantar a inveja. 

Outro dos mais sinceros sentimentos, e de difícil compreensão objetiva - praticamente impossível - é a vaidade. Está muito atrelada à existência humana. A vaidade se relaciona com o desejo de permanência. Se relaciona não com o cuidado que se tem com a vida, mas com o medo do inusitado, do outro, do que não é possível prever, corrigir, planejar ou controlar. A vaidade é uma bandeira flamejante coalhada de sinais de fraqueza e debilidade. 

terça-feira, 11 de janeiro de 2022

Poderosa

O oftalmologista recebe a paciente. Mulher vistosa, no mínimo. Decidida, peito aberto, postura ereta, fluência sexy. Ela começa a falar da pane que sofreu. Quase morreu. Debutou na ambulância por uma taquicardia súbita. Já sentada na cadeira para se submeter aos exames, e, subitamente, a máscara veneziana oftálmica lhe confere um liberdade psicanalítica de não olhar ninguém e simplesmente falar. Fala e associa livremente sobre toda a sua problemática – como quem entra num labirinto – e tem grandes vislumbres. O oftalmo, com respeitosa admiração, vê a mulher crescer naquela elevada cadeira voadora de exames. Então, ela sai maior do que entrou.


segunda-feira, 10 de janeiro de 2022

GO ON


 Tracejo. Tracejo aqui sem nem saber por quê. Tracejo com vontade de falar coisas fortes, boas, irmanadas. Que talvez possam servir de alento para você. Que possam falar de que o meu coração sente e, assim, dizer aqui para você. Que eu possa falar do colorido da noite quando está quente, nesses dias de verão, que exalam vida por todos os lados. Das árvores centenárias que habitam as ruas, tranquilas no escuro cálido, felizes, tão felizes, que chegam a reluzir. A moldura do céu provoca essa alegria, típica dos dias mais quentes. As nuvens investigam outras geometrias, mais acesas e lascivas. O céu, por sua vez, também aparenta uma largura mais branda, mais generosa, mais acolhedora, nessas horas que indicam que os dias serão de calor. 

Queria dizer isso aqui, para você. Sobre essa impressão forte que causa um dia assim. Nas alturas de qualquer ponto, de qualquer lugar onde agora é verão, um manto invisível veste tudo de cores molhadas de suor, de lágrimas, de sorriso, porque tudo se torna tão tênue quanto intenso, à medida que os dias vão gotejando o fim do ano. As pessoas vestem uma preocupação temporária sólida, e, na caminhada, ou no trânsito, ou em qualquer recorte, exibe uma pesarosa e sincera cobrança de fim de ano. A questão, mais que o lucro da mídia, é o tempo. Como ver o tempo? O que dizer dele? Dos anos que vão varrendo o passado e, daqui a pouco, nem lembrança haverá? E vai chegar uma época em que se lembrará com riso do que hoje é tão importante. Como também agora é hora de não dizer mais nada, de parar. De apenas desejar que o tempo fale no caminho das horas, na noite, e na vastidão singela em que tudo isso há. 


sexta-feira, 24 de maio de 2019

Marcia K.





Na adolescência, Marcia foi rebelde de carteirinha. Como hippie de boutique, seu estilo liberal era uma bandeira flamejante de esquerda. Os pais solícitos não tinham dramas. Se a tarde estivesse entediante, ela ia para o Nordeste de carona num avião da FAB, com uma mãozinha de militares, amigos da família.
 As palavras-chave da garota-cabeça iam de Reiki a chá santo daime, ao qual ela comparecia a eventos organizados por psicanalistas. Era, inclusive, a única aproximação sua com Freud, o qual ela descrevia como teórico burguês. Vomitava ao tomar o chá no cerimonial e depois via felicidades coloridas lembradas no dia seguinte.
Como revolucionária que se preze, ela tinha na ponta da língua todas as senhas para as sextas à noite regadas à cerveja e vinho sangue de boi, sem faltar os baseados em sentido horário nas rodas de conversa. Todo o repertório de esquerda, todas teorias de Marx e adjacências, ela tinha domínio, considerando-se que se restringissem às orelhas dos livros. Esse era o máximo.
Como também, era o máximo alcance dos amigos, que só poderiam discutir o que circundasse orelhas e contracapas dos livros.  Eram códigos com pacotes ideológicos que incluíam pôster de Che Guevara e citações sobre ditadura do proletariado,  apesar de eles não saberem muito bem do que se tratava tudo aquilo.
Marcia era liberal para viver, se divertir e amar. Inclusive, o amor livre era algo que se encaixava nela. Não havia grandes sofrimentos, havia apenas sexo básico. Marcia nunca se apaixonou de verdade. Havia, por isso, uma espécie de objetividade nas suas investidas amorosas, as quais, geralmente, sem as privações desejosas que apimentam as paixões, acabavam sem ao menos começar. Em suma, não havia dores, nem sofrimentos, como também, não havia  sentimentos.
Mas todo liberal na adolescência é uma semente transgênica apta a germinar como o mais fértil adulto conservador. É uma lei da natureza. Talvez porque a pessoa chafurda na sarjeta pejorativa. Vê-se como embrião de uma mentira pior do que a turma da TFP -Tradição/Família/Propriedade, porque enxerga de camarote o quanto esse papel esquerdista não tem nada de original. Ao contrário, é uma cópia ainda mais estereotipada do que a bandeira de direita. Aliás, que páreo duro.
Fato é que bastou um mínimo estímulo para Marcia ir em busca do seu extremo oposto. A ânsia por algo inexplicável flanava nessa motivação. Após a liberdade de viver em apartamento alugado pelo amor livre, das viagens de carona, de tudo bancado por papai, vieram urgentes os anos pós-faculdade. Não demorou para o acaso promover o encontro entre Marcia e Paulo. A princípio, ela o achava ótimo. Seu único defeito era não fumar maconha. Também não bebia, fora isso, era perfeito.
O namoro evoluiu, passou-se o tempo. A obstinação de Paulo resultou em fazê-la abandonar antigos prazeres e também de se afastar de velhos amigos que não passavam dos três dedos de uma mão. A relação prosperou, transformou-se em união estável. Marcia pegou gosto pela coisa. Passou a ver a beleza das joias douradas e abandonou de vez as bijuterias de bicho grilo, que ela antigamente tanto se identificava. Não é que passou a ostentar um solitário que ganhou de Paulo no último aniversário?
Passou também a ver a elegância clássica do salto alto. Passou a usar terninhos básicos que, cada vez mais, ocupavam espaço no seu guarda roupa, e eram o modelito ideal para suas palestras sobre gestão de carreira, que – como o tempo passa – já eram mais de 7 anos de vertiginosa ascensão profissional. Passou a ver a lógica de pessoas caretas das quais ela tinha aversão na época de faculdade. Se sua amiga solteira era convidada para jantar, com a indelicadeza herdada dos tempos de esquerda, ela lhe pedia, por favor, que evitasse o constrangimento de vir avulsa na noite só de casais.
Via tudo sem dramas e sentia dores emocionais com objetividade. Até mesmo maus momentos já vividos como esposa e mãe de família, com a casa própria que necessitava de reformas, tudo passava pela ótica da sua praticidade. Só que às vezes, a falta de ligações genuínas lhe dava um vazio sem explicação. Mesmo com as comadres casadas, por mais presentes que estivessem na sua ampla cozinha cheia de modernos eletrodomésticos, as abordagens padronizadas sobre os afazeres da mulher moderna não lhe causavam nenhum alívio, e sobrava lá no íntimo um buraco que a incomodava como uma dor de dente.
Como profissional já reconhecida pelo perfil arrojado de transformar frieza em objetividade estratégica, Marcia passou a viajar a trabalho para palestrar em outras capitais. Tornou-se profissional renomada. Foi num sábado à tarde servindo um chá, enlevada pela vaidade de listar suas conquistas, que Marcia contou à amiga avulsa que passara algumas noites de amor com um colega de trabalho numa das viagens.
Com a calma dos que não se importam, ela sequer se deu conta de que havia traído o marido. Ao contrário, a sua lógica prática sequer cogitava esse ínfimo detalhe. De súbito, a sobrancelha levantada da amiga avulsa a assustou. Marcia se deu conta de que havia revelado um segredo que podia lhe prejudicar. Aí, com os meios da delicadeza que só os amigos utilizam, a avulsa argumentou que ela estava traindo o marido, e aquilo foi um divisor de águas. Então, de vez, Marcia preferiu a solidão das comadres casadas na cozinha e nunca mais soube da amiga avulsa.



segunda-feira, 17 de dezembro de 2018

Dias de Glória


A vida de Glória era perfeita. Dias produtivos, noites tranquilas, manhãs aprazíveis, família feliz. A pródiga rotina só lhe dava prazeres compensadores. Valeu a pena ter três filhos com um marido tão dedicado. Era a santíssima trindade, o tripé que funcionava.
Tudo era resultado do seu trabalho de tijolinho por tijolinho. De ter sempre a cabeça no lugar. De ter tido, desde criança, uma malícia irônica que lhe era um útil pente fino. Suas escolhas sempre se basearam nessa perspicácia de fábrica. Sempre fez parte da sua natureza essa acurada observação de mundo.
Será que o pai entediado à mesa da infância e a mãe subserviente na cozinha contribuíram? Ela nunca cogitou tal pergunta. Via-se apenas como merecedora das boas horas. Gostava de saber o quanto o bem-estar arquitetado era sua maior contribuição para o mundo. Era uma posição ideológica flamejante, que espirrava feito água benta por onde ela passasse.
Tinha um apreço particular por fazer as pazes com qualquer pensamento ruim e deletá-lo da alma. Adorava quando conseguia. Bom era o raciocínio puro e imaculado. Tudo atuava em conjunto para que erigisse o melhor de si mesma. Nada era por mero acaso. Fenômenos da natureza, eventos da rotina, tudo eram mensagens do planeta para reforçar as suas dadivosas ações em favor da raça humana.
Eram sinais, inclusive. Um dia de sol, o sorriso de um atendente, a atenção de uma pessoa na rua, um diálogo trivial com alguém numa loja, a buzinada de um carro colorido na esquina, crianças do colégio em grupo guiadas por professoras nas calçadas, tudo era um sinal de fumaça que vinha lhe confirmar o quanto era gloriosa a sua missão na Terra.
Conseguiu mais um pontinho, o de tirar os pensamentos obsessivos nas manhãs, que geralmente a prejudicavam. Teve bom retorno ao ver que as primeiras horas do dia agradeciam o seu esforço mental. Via-se como um soldadinho a realizar bem suas tarefas. Chegava a ser irritante o seu bem-estar excessivo e o bom humor como um iceberg que, muitas vezes, não tinha a menor sensibilidade com os outros.
Ao contrário, o seu contentamento excessivo se multiplicava exponencialmente ao se exibir a seus frágeis interlocutores. Frases com um acento vaidoso, a ênfase na sonoridade de vogais ao expressar seu enlevo superiorizado, junto com a incapacidade de perceber um problema fonético na articulação das suas frases, tudo evidenciava essa ironia meio surda frente a como era recebida pelos interlocutores. Ela seguia feito um trator, alheia ao feedback do outro.
De modo nenhum, ela percebia que todas as suas falas saíam com a amplificação abafada, oca e incompreensível, e essa falta de noção de como seu aparelho da fala funcionava, reforçava a excessiva autoestima que, em absoluto, enxergava suas imperfeições grotescas. Ao contrário, ela as impingia goela abaixo a seus ouvintes, essa voz, cuja ausência de autocrítica jamais imaginou a necessidade de menos supremacia e menos superioridade.
Fato é que a contabilidade de ar e um certo pressionamento mandibular atado resultava na voz plastificada que sustentava essa superioridade peculiar. Era uma caixa acústica com o som que vazava entre os dentes. Ao ser gerado, o som metálico saía pelas grades dos dentes. Como se fosse língua presa, mas era pior, em função de a fala escapar pela dentição, mais ou menos isso. Essa característica fonética subestimada por Glória, com a voz vazada pelas grades, como um ventilador de voz que cuspia saliva, evidenciava o conteúdo da sua fala.
Aí reside o mistério. Na empatia que a raiz conservadora exerce em temperamentos frágeis. Naqueles que precisam da reedição materna, da lei e da ordem. Neles, que se encaixam com perfeição a temperamentos como o de Glória. Eles são sua razão, sua demanda, são o motivo da sua existência.
Glória foi auxiliada pelo destino. Casou-se com um homem que tinha quilos de paciência. Mais que isso. De algum lugar da sua alma masculina, por alguma inexplicável razão, daquelas razões que a própria razão desconhece, ele nutria uma imensa admiração pela esposa. Via-a como uma divindade a auxiliar seus seguidores. Trabalhava no Rio de Janeiro e ia aos fins de semana para Curitiba, e era talvez o único exemplar masculino fiel na face da Terra em solo fluminense.
Numa sexta-feira à noite quente cravejada de estrelas no céu que dava baforadas eróticas de testosterona nos mortais, com samba a ecoar por todos os bairros e becos, o marido de Glória era um ser que se comprazia em ficar fechado em seu quarto de hotel assistindo Ratinho. Tudo pela amada. Tudo pela fidelidade cega e sem limites, tudo para ser auxiliar do seu trabalho em prol da humanidade.
Apoiada no seu cajado invisível, a esposa seguia impassível em solo paranaense, dando o exemplo a pessoas quanto à sua bem sucedida trajetória como ser vivo cheio de graça produzida com seus dias de Glória. Via-se designada à essa missão. Quando entabulava uma conversa com algum conhecido, ela assumia, sem filtros muito menos a inexistente autocrítica, o seu bom humor embolorado com suas frases cuspidas de plástico.
Sendo enviada aos mortais com o eficiente uso da sua psicopatia doméstica e bem elaborada, ela agia designada por seres superiores a mostrar, com o bom exemplo ideológico da sua felicidade doméstica, o quanto uma maionese bem feita e uma batata assada, tudo à luz de uma cozinha clara e asseada, poderia incidir e fazer de bem, e acabar com a depressão, e gerar bom caráter à humanidade, e resolver todos os problemas subterrâneos do mundo.  
Isso sem ler sequer uma linha de um livro. Não lhe foi dito ainda outro detalhe curioso da sua fluência. Por falar em alimentação, Glória se nutria de catequizar pessoas. Era seu combustível. Era seu escudo, seu segredo, sua fórmula. Usava locais como o empório da família, o qual frequentava diariamente, e exercia a sua função de influenciadora ideológica da tradição, família e propriedade. Como um pastor da igreja universal, incidia nas angústias dos mortais suscetíveis, ao oferecer como barganha a sua alegria contagiante.
Falava às expensas sobre a sua vida tão bem construída. Sobre as pessoas de casa. Contava detalhes, fofocas, exaltava fraquezas, vícios, qualidades, defeitos, sutilezas, virtudes, fracos, recortes da vida diária, finais de semana, cenas da vida privada, tudo recheado com uma superioridade que hipnotizava os interlocutores, que eram transportados à essa terra dos gigantes, dos seres perfeitos que ela conseguia desenhar no seu círculo de hipnose via fala amplificada dentro de um saco plástico.
Essa é a missão do humor produzido por uma psicopatia bem fundamentada: exercer influência naqueles que estão a seu alcance. Exercer poder. Quando recortava frases da vida privada e falava dos familiares como seres de estirpe superior que exerciam seus papéis, Glória estava influenciando o mundo, com sua participação ativa como mãe, esposa, mulher perfeita de caráter ilibado, com um exemplo de que a felicidade acontece nos seres que obedecem o manual do bem viver. O que Glória desenvolveu e agora se propaga através de seus interlocutores é um prêmio, entende?



terça-feira, 11 de dezembro de 2018

Velho Rui





            Estou em desespero. Não tenho a quem pedir socorro. Também não confio em ninguém. Melhor dizendo, não tenho ninguém. A verdade curta e grossa é que estou amarrado na velhice, e não entendo nada. Ando na rua e disfarço. Pareço invisível. Ninguém me vê. Ninguém olha minha jaqueta de couro militar, o boné da Esquadrilha da Fumaça, a blusa verde de lã legítima.
Ninguém se importa. Se eu cair duro, sem cerimônia, vão me varrer para o necrotério. Só de pensar, me arrepia a espinha. Hoje, estou desesperado. É como no juízo final. Quero aproveitar os últimos momentos, mas é igual a estar nos instantes derradeiros e não ver mais nada.
Estou no fim do laço e tenho tempo sobrando, engraçado. O dia do juízo final pode ser hoje, agora, a qualquer momento. Mais ainda, quando minha cabeça ferve. O tempo livre apenas serve para eu pensar no quanto tudo se esgota entre as rugas do meu desespero. Não há como aproveitar mais nada.
Agora, você vai se surpreender. Na verdade, isso é uma mentira, não sou velho. É um engano, um castigo, um absurdo! Continuo com dúvidas, até piores do que antes. Tenho dores no corpo, mas não entendo nada desse negócio, nunca entendi. O mais complicado são as lembranças, que cálice amargo! Quando elas surgem, minha consciência é assaltada por mágoas difíceis de acreditar. Enrolo tudo num mesmo bolo e me perco com a quantidade de dores.
Eu me pergunto por que ninguém vê uma pessoa com um mínimo de misericórdia. Por que ninguém ajuda ninguém, e todo mundo fica no seu casulo, sozinho? Pensam que isso vai ajudar? Digo de cadeira que não. Daqui a pouco você, ou o amigo, ou o parente, estará morto, e aí, vai ficar todo mundo pasmo, com a sabedoria do fim. Justamente com esse fim que cala toda ignorância.
Claro que se eu fosse jovem, também, não daria a mínima. Fico até aliviado por não ser sou só eu. Tem muita gente nessa situação. Você pode até dizer que é jovem, mas se não morrer antes, sua hora vai chegar, talvez até bem pior que a minha. Vai saber. Filhos? Eles não têm tempo. Dois não valem por um. Sou um peso para eles. Já viu velho caber na vida de jovem?
Raramente durmo. Internet é aspirina de uso contínuo. Quanto mais desesperado, mais uso. Papai seria um usuário habitué, pelo destempero que lhe era peculiar. Papai era engraçado, tão duro e ríspido. Não sei porque ele era assim difícil. Puxei mamãe, que sempre acalentava tudo com um florzinha de esperança. Não fosse isso, acho que nem estava aqui para falar.
Mas estou cansado de mim, cansado de não descansar um segundo, de não ter uma gota de sono. Vejo a noite se esvair e não durmo. As horas escorrem ligeiras, e eu deitado, sou testemunha da minha difícil respiração. Quando eu era jovem, como dormia, como a engrenagem funcionava. Vivia sem saber que vivi.
E agora? Agora, a noite é a hora da verdade. Posso ter um dia bom, mas quando chega a noite, sou tomado pelo pânico. Não é à toa que existem filmes de terror. Noite é desespero. Basta apagar a luz para eu ser tomado pelo pavor. Entro num calabouço inacreditável, é o inferno.
A noite é o teste que a gente passa, uma hora você vai passar também, vai chegar a sua hora, pode crer. De dia, tudo pode estar encaixado nos devidos lugares, mas é de noite a maior prova, a verdadeira prova, aliás. Bem na hora de deitar, quando eu adoraria fechar os olhos em paz, sou tomado por mim mesmo, pela sombra, por pavores.
Lembranças são gigantes assustadores. Junta tudo, as coisas se enlaçam e entro no túnel subterrâneo. Tenho taquicardia, ao invés de descanso. Levanto, olho pela janela, o mundo dorme o sono dos justos. E eu, protagonizo o inferno. Todo mundo está vivendo, só eu estou morrendo.
Nos finais de semana, é tudo pior. A angústia carrega nas tintas, e aí, me torno um elemento perigoso. Viro um monstro que anuncia a falência deste País. Engraçado, mas não sei bem por quê, Deus não me quer com Alzheimer. Estou com a cabeça boa, até demais. As lembranças inclusive é que me torturam.
Sim, já falei, mas não lhe disse que sou um refém das lembranças, que gostaria de fazer tudo diferente. De acertar com as pessoas que errei, de não magoar quem machuquei. Queria pedir perdão a algumas pessoas, queria que elas me amassem, mas isso é impossível.
Minha mente se multiplica por mil e meu rosto é tomado por olhos de fogo, que não seriam meus, caso eu tivesse alguém para abraçar. Alguém que dissesse que vou ficar bem, caso eu tivesse uma mão para segurar. Mas o que acontece é o lança-chamas se jogar nas redes sociais. Destilo ódio sem limites, transbordo ira, convoco a revolução. A cada cinco minutos, coloco linhas de ódio, como se isso resolvesse alguma coisa no meu caos de vida.
Ficar em casa é uma tortura. Aí, se apossa de mim uma vontade de não fazer nada, de não ser nada. É a hora mágica do palco sem plateia, apenas eu e as cicatrizes entre as frestas incontroláveis.  Sabe o que é desespero? É uma prestação de contas, um conta-gotas maldito, que cobra juros altos, a cada pedaço de meu dia, pior ainda quando estou em casa.
Caso é que sou aposentado. E geralmente, como não tenho o que fazer, eu me puno. Fico dentro daquilo, me judiando, me fazendo mal. Olho e me vejo numa posição fetal, uma criança densa dentro de um corpo de velho, e aí, não tem ninguém para chamar. É bem essa a hora do pânico, do desespero.
Eu lhe digo uma coisa. É a alma que tem pressão alta. É a alma que faz o coração ter um ataque súbito, é o abandono que maneja toda essa desgraça. A alma quer viver e não quer morrer. A alma quer só um afago que podia fazer toda a diferença do mundo. Sabia que eu era um rapaz disputado pelas garotas? Sabia que eu ficava no colo no meu avô como o predileto? Estudei nas melhores escolas, fui um grande engenheiro, realizei obras! Mas nem assim você quer saber de mim, quem se importa?
Mas no fundo, estou mal, preciso de ajuda, preciso voltar a me sentir vivo, preciso ser amado. Logo eu, falando em ser amado, imagina se alguém vai querer amar um trapo velho como eu. Mas tão bom poder falar um pouco, estava precisando desse desabafo. Engraçado, até parece que me sinto melhor?
Vou lhe dizer, preciso ficar firme. Por mais que a minha vida seja um inferno. Mesmo que atravessar os dias seja um martírio, preciso ficar firme. Porque se fraquejar, eles vêm, me põe num asilo para vender esse apartamento. Aliás, meu orgulho nunca permitiria pedir algo nesse sentido, mas me ocorreu que eu posso tentar, então vou arriscar em lhe perguntar: você pode me ajudar?



quinta-feira, 29 de novembro de 2018

Efeito Retardado


A esposa pergunta ao marido:
- Sabe aquele homem que falou com você lá dentro da loja?
- Não.
- Como não?
- Argh – bocejo entediado termina finalmente expelindo o – Não sei.
- Como?
- Ahn?
Cansada de repetir tudo, no mínimo, três vezes, ela insiste:
- “Você não ouviu o que eu disse?”
Ele cospe, funga, fica vesgo, confabula entre pensamentos extremos, até sair o double monossílabo:
- “Não vi”, com visível má vontade, porque, claro, o marido sabe quem é o homem que falou com ele dentro da loja. Sua resistência se refere à se a pessoa à sua frente merece ou não uma rápida resposta.
O “ahn” alongado e lacônico mostra o assunto levado à análise, até as últimas consequências. Um dos segredos para manter um casamento é criar esse diálogo mudo e esse desrespeito em suspenso.
Em outras palavras, abusar do intervalo que aguarda um desfecho, e utilizar em larga escala esse desprezo estratégico que, uma vez estabelecido, tem resultados notáveis na manutenção do amor próprio, leia-se egocentrismo masculino.
No intervalo entre a emissão do ahn e a resposta em suspenso, há o peso de uma eternidade entre homem e mulher. Naquele justo instante, ele delibera em um misto de ângulos antagônicos, que pergunta se a mulher à sua frente tem que sofrer – e quanto.
Nesse intervalo que incide um inconsciente coletivo inteiro, ele vê todo o filminho da sua vida. O final trágico, onde apenas a mão dela ele terá para segurar, no derradeiro da existência. Apesar de ser bem difícil suportá-la. O filme faz nhoim-nhoim-nhoim, até que ele conclui o raciocínio. Então, ele vê que precisa dela. Aonde ele vai achar outra que aguente tudo? Então, rende-se ao óbvio, “no fundo, ela tem que me suportar. Não vivo sem ela, pronto.”
Ou seja, entre a esposa merecer ou não a resposta, há um amplo espectro de opiniões do marido. Há dúvida, há votos ou não reiterados de matrimônio, há mau humor, acima de tudo. Também há bullying, desprezo, preguiça, tédio, tudo incluso no pacote “ahn?”, do qual ele faz uso com folga e soberanamente.
Há, também, um desrespeito por tudo que a mulher permitiu. Ela deu a permissão para ele violentar sua dignidade. Como se sua personalidade tivesse sido estuprada, ou melhor, ajustada, pelo bem maior do amor. Ela aceitou que ele a tratasse assim.
De forma que, dentro desse intervalo de a esposa merecer ou não a resposta, há também, em grande escala, a autoestima feminina em frangalhos, da qual ela convencionou chamar – há tanto tempo, que não lembra mais! – de amor eterno. Mas será amor se submeter a alguém que não lhe dá nem uma resposta mínima?
Por trás desse amor enlatado, há medo. Há a noção secular, cravada no DNA, que é normal a esposa ser desvalorizada. Como são em maior número no planeta e há o instinto de reprodução, a mulher se olha perdendo. Há concorrentes, e nisso está embutida a falta de respeito por si própria, numa dramática desvalorização do que ela vê no espelho.
Há cegueira. E nesses casos reincidentes de falta de visão, ela traceja uma versão deformada de si, e fica com essa caricatura útil na hora do seu chicotinho reafirmar que ela não é digna de uma pronta resposta do marido.
Há dificuldades nela em autoconhecimento, desde muito jovem. E aí vieram os filhos, as primaveras rápidas, as ceias de fim de ano, a escola das crianças, os chás para as febres nas intermináveis noites de vigília, o cuidado com a casa, e cá está ela, devido a jornadas triplas, mendigando uma resposta mínima.
Mas não é apenas um comportamento de um único RG feminino. É um adestramento de milênios, universal, escravagista, penoso para ambas as partes, porque o homem, como culpado no papel de algoz, naturalmente, cria um carma pelo uso de armas invisíveis. Deve haver uma relação desse comportamento com homens, estatisticamente, morrerem mais cedo.
De modo que, quando ela aceita não ter uma pronta resposta e outras cositas que vem no pacote do “ahn”, sua passividade e ausência de autoestima estão reforçando a noção de que ela é um ser feminino que tem seu marido, e casamento é isso, é aceitar as dificuldades, afinal, a convivência é difícil, não é?
Também, se ela não aceitar, a sua frágil autoestima já imagina a concorrência bater à porta. Então, ela precisa segurar seu casamento. Ela é uma leoa que ruge todos os dias, para espantar, a seus olhos, mulheres mais jovens e mais interessantes que ela. Ser esposa é matar vários leões por dia, e manter seu estado civil de casada e ver seu homem sentadinho assistindo futebol, barrigudo e empunhando a cerveja, seja pelo preço que for. Tudo tem seu preço.
Sua imagem no espelho diz que ela é merecedora dessa figura masculina, é seu marido, logo, só poderia agir dessa forma. A questão é de contabilidade, de barganha, de troca. Quanto à dúvida de a esposa merecer ou não a resposta, depois de longa deliberação, o marido responde, mas permanece na dúvida. Por isso, insiste no ahn, sempre, até que a morte, ou alguma coisa, os separe.
O ahn segura um casamento. Dentro da barganha pela inestimável presença da sua bunda no sofá, a esposa sabe que o precinho é baixo, basta apenas a humildade de perguntar, no mínimo, umas três vezes, quando ela dialoga com o marido. Isso faz com que a conversa entre o casal seja sempre recheada de perguntas, e, com uma longa análise de pontos antagônicos masculinos, algumas mínimas respostas.